Haiti - Muito além do terremoto

Desde o início da segunda semana de 2010, o Haiti – país mais pobre das Américas – vem sendo ponto de destaque e atenção em todo o mundo. Jornais, rádios, revistas, a internet e a TV. Governos, empresas, instituições... todos os olhares voltados para o Haiti, repito, o país mais pobre das Américas.

Porque tanta gente olhando para o Haiti? Quais interesses? Logo no início de ano, em férias, porque olhar para o Haiti? A causa de tantos olhares de tantos lugares não poderia ser outra... sim, não poderia ser outra, uma catástrofe. Na tarde da terça-feira, 12/01/2010, em um espaço de um minuto, um terremoto atingiu o pequeno país haitiano, destruindo vidas e edifícios (inclusive a sede da missão das Nações Unidas no país, o palácio presidencial, a catedral). Já se estima que 100 mil seja o número de pessoas mortas por causa desta catástrofe. Escolas e hospitais, que já não eram suficientes para atender a população, também foram destruídos.

Sim, mas todos esses dados nós já sabemos. A mídia e os governos estão todos os dias dizendo, como também mostrando a quantidade de doações e ajudas urgentes para o Haiti. Portanto, gostaria de alertar para um outro aspecto que a mídia e os governos não nos mostram, o Haiti que não conhecemos, que não nos é mostrado. O Haiti antes e para além do terremoto.

Conhecer um pouco mais deste pequeno país é conhecer um povo que busca cotidianamente sua liberdade e soberania, um povo que não se rende e não abaixa a cabeça diante da opressão. Os haitianos foram os primeiros escravos a conquistar a libertação e a independência de seu país no século 18 e, desde o século 20, enfrentam ditaduras e intervenções imperialistas com resistência exemplar.

Em junho de 2010 se completarão seis anos que os/as haitianos/as vêm travando mais uma batalha nesta longa luta pela liberdade e soberania. Uma batalha contra a ocupação de seu país pelas tropas da Minustah (Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti). As tropas internacionais da ONU (Organização das Nações Unidas), com o discurso de que estão lá como “Força de Paz”, são um braço da opressão e do domínio na América Latina. Ora, é simples, se são “tropas de paz”, porque são formadas por soldados fortemente armados, e não por médicos/as, técnicos agrícolas e professores/as?

Alguns dados nos fazem pensar um pouco nos inúmeros “terremotos” que vive o Haiti: Dos 8,1 milhões de habitantes, 80% vivem abaixo da linha de pobreza, quase 75% das casas não têm água encanada ou esgoto, menos de 40% da população tem acesso à água potável, não há coleta de lixo, 80% da população está desempregada, a renda per capita anual do Haiti representa 15% da média latino-americana, o analfabetismo atinge 45% da população, a expectativa de vida caiu de 52,6 anos em 2002 para 49,1 anos em 2003, só 24% dos partos são atendidos por pessoal qualificado, o País ocupa o posto 153° na classificação do Índice de Desenvolvimento Humano (PNUD 2004).

O questionamento é simples e direto. Em quase seis anos de “missão”, o que mudou no Haiti? O salário mínimo diário de um trabalhador/a haitiano/a continua sendo o mais baixo da América Latina, estando por volta de 1,7 dólar. E quando a população se organiza para reivindicar aumento salarial, contra a fome ou pelo acesso à água, tais lutas sofrem forte e violenta repressão. E mais, dos recursos destinados a “missão” (600 milhões de dólares por ano), 85% vão para os militares e policia civil.

A presença de militares no Haiti é uma forma de treinamento para lidar com as periferias urbanas empobrecidas. Prova disso é que os militares brasileiros recebem treinamento no Rio de Janeiro, vão para o Haiti e, depois, voltam para atuar na ocupação das favelas do Rio de Janeiro. O Haiti tornou-se um campo de experimentação, um “ensaio” para a militarização das periferias urbanas. Pois então, qual povo gostaria de “conviver” cotidianamente com soldados armados até o pescoço e tanques de guerra, nas ruas e em todo o lugar, em nome da “paz”? “Paz sem voz não é paz, é medo!”, já diz a música do Rappa. Pior é saber que o Brasil é o país que está no comando de tais tropas.

Outra questão é a ligação entra a ocupação militar e a ocupação econômica. Pois a “missão”, na verdade, lá está para ajudar as empresas e indústrias multinacionais a explorar brutalmente essa mão-de-obra barata. Não é à toa a instalação de dezoito zonas francas, para circulação de mercadorias sem se sujeitar às tarifas alfandegárias e impostos, configurando-se uma “mini-ALCA” para o Haiti. Praticamente não há mais empresas estatais, pois as privatizações estão deixando o país nas mãos dos estrangeiros. O grande objetivo não é resolver a pobreza, mas produzir, a custos mínimos, para o mercado norte-americano, garantindo que as elites continuem a explorar e escravizar o povo, controlando a população e a economia.

Estes, que exploram historicamente o Haiti, hoje aparecem fazendo “doações” generosas. Sobre estes, São Gregório de Nissa, nos anos 300, já havia dito: “Talvez dês esmolas. Mas, de onde as tiras, senão de tuas rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrimas, dos suspiros? Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbolo, ele o recusaria porque teria a impressão de morder a carne de seus irmãos e de sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria estas palavras corajosas: não sacies a minha sede com as lágrimas de meus irmãos. Não dês ao pobre o pão endurecido com os soluços de meus companheiros de miséria. Devolve a teu semelhante aquilo que reclamaste e eu te serei muito grato. De que vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem? (Sermão contra os usurários).

Do outro lado, desde 2005, quando o Jubileu Sul organizou uma Missão Internacional de Investigação e Solidariedade ao Haiti, foi fortalecida a campanha internacional de solidariedade permanente (com ou sem terremoto) por fora as tropas do Haiti, pela re-construção do país e pela garantia da soberania e autonomia do povo haitiano, denunciando toda esta situação. Inclusive a campanha já organizou diversas missões de visitas ao Haiti e vindas de delegações haitianas ao Brasil. A campanha é organizada por diversas organizações e movimentos de todo o mundo, dentre elas, o Jubileu Sul, o Grito dos Excluídos, a Assembleia Popular, a Via Campesina, entre outros.

Com ou sem terremoto, é necessário intensificar a campanha de solidariedade com as lutas do povo haitiano. Salvar as vítimas, re-construir o Haiti, cancelar as dívidas, retirar as tropas, enviar solidariedade, e o lema daquele país já nos dá o impulso: “A união faz a força”. O Haiti nos convoca, sua vida nos exige!


Elson Matias
(Assembleia Popular / PB).


*Texto baseado em:
-Relato da Missão Internacional de Investigação e Solidariedade ao Haiti: http://www.jubileubrasil.org.br/nao-a-guerra/Livro_Haiti_final.pdf

-Panfleto “Haiti nos convoca – 5 anos de ocupação basta!”: http://www.jubileubrasil.org.br/nao-a-guerra/folder%20haiti%202009%20versao%20xerox%20at.pdf

-Cartilha “Haiti: Sua história, seu povo e sua luta”: http://www.jubileubrasil.org.br/nao-a-guerra/Cartilha%20Haiti%20-%20set2009.pdf

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